segunda-feira, 21 de agosto de 2017

A VIDA É BELA


A VIDA É BELA (1997)



“A Vida é Bela” só foi uma surpresa na época da sua estreia para quem de todo desconhecesse o trabalho anterior de Roberto Begnini. É verdade que, até aí, este actor, argumentista e realizador italiano não tinha conseguido uma obra de tal forma perfeita e acabada como é o caso de “La Vita e Bella”, mas também não deixa de ser verdade que alguns dos seus filmes anteriores anunciavam um autor de comédia particularmente interessante e um actor de uma qualidade e originalidade de representação acima de média. Neste aspecto, há mesmo que referir que Begnini parece retomar uma tradição de humor muito específico de algumas regiões de Itália, nomeadamente do sul napolitano, que teve em Totò e Eduardo De Filippo os seus mais lídimos representantes.
Oriundo da Toscânia, no centro de Itália, acaba por retomar um pouco do estilo de Totò, dos monólogos sem nexo aparente, da largueza dos gestos, da franqueza da frase, da voz forte assumida como reflexo do medo. Que outro actor senão Totò, Roberto Begnini relembra quando explica como se deve servir num restaurante o frango ou a lagosta? Que outra personalidade do cinema cómico mundial poderia “traduzir” o alemão do chefe de campo de concentração senão Totò? Mas há mais: Totò era um actor que necessitava de realizações (mise-en- scène) simples, lineares. O seu tipo de interpretação impunha-o. Um bom realizador para Totò era aquele que se apagava perante o trabalho do actor, limitando-se a segui-lo. Begnini-cineasta compreende-o também, e coloca-se quase inteiramente ao serviço de Begnini-actor. Sem que, todavia, dessa subjugação do realizador ao actor exista nada de negativo. Muito pelo contrário. Um realizador tem de perceber como tirar o melhor partido do seu filme e dos elementos de que dispõe. Só isso.
Mas Begnini-realizador não se pode comparar com os medíocres directores que serviram Totò. Ele é um poeta. Um poeta de escrita simples, mas um homem de uma sensibilidade e cultura vastas. A forma como constrói esta “La Vita è Bella”, parábola sobre a guerra e o amor, demonstra-o bem, depois de o termos visto brincar com as trocas de personalidades em filmes como “Johnny Palito” ou “O Monstro”.
Erguer uma comédia sobre o holocausto nazi não é tarefa fácil. Antes de Begnini, apenas Charles Chaplin, com “O Grande Ditador”, e Jerry Lewis, com “Le Jour où le Clown Pleura” (este nunca estreado) o haviam tentado. Chaplin disse mesmo, tempos mais tarde, que se na altura já soubesse a verdadeira dimensão da monstruosidade dos campos de extermínio nazis, não conseguiria certamente realizar a obra onde parodiava Hitler. Mas Roberto Begnini sabia-o bem e não desconhecia o que iria defrontar quando se arriscou neste empreendimento. O seu filme começa mesmo como uma discreta comédia de costumes, numa pequena cidade italiana, em finais da década de 30, com Mussolini no poder e a Itália atravessada já por alguns angustiantes sintomas do que estaria para vir.
Guido (Roberto Begnini) chega a Arezzo, cidade da Toscânia, num dia de 1939. Vem acompanhado por um amigo poeta e está disposto a alugar uma loja para aí montar uma livraria. Entretanto, emprega-se como criado de mesa num restaurante do tio, e vai-se cruzando, aqui e ali, e em circunstâncias sempre imprevistas, com Dora, uma professora (que está para casar com um ufano fascista), a quem chama “Principessa” (o primeiro título de “La Vita é Bella” era mesmo “Buon Giorno Principessa”) e por quem se apaixona. Dora é uma personagem interpretada por Nicoletta Braschi, mulher do actor-realizador na vida real. Como se calcula, Dora, que não se adapta ao formalismo do seu futuro marido, escolhe a inocência poética e o imprevisto mágico de Guido, com quem foge e casa, e de quem tem um filho.
Diga-se, desde já, que há alguns momentos particularmente bem resolvidos nesta obra e um deles é precisamente uma elipse notável que assinala mais ou menos o meio da obra. Dora e Guido, em fuga, entram numa florista, a câmara imobiliza-se à porta, e, instantes depois, dessa mesma porta sai Joshua, o filho do casal, seguido pelo pai e a mãe. Num espaço de segundos, pela magia da elipse cinematográfica, alguns anos da vida de uma família são condensados no simples acto de entrar e sair de uma porta.
Alguns tempos depois, os sintomas da perseguição anti-semita instalaram-se na vida italiana. O que anteriormente poderia parecer um folclorismo (o cavalo pintado a verde, com as letras a negro: Este cavalo é judeu!) é agora uma trágica realidade. Os judeus italianos são arrebanhados e mandados em comboios de morte para os campos de extermínio alemães. Guido, Joshua, o tio são alguns desses judeus. Dora persegue-os e vai no mesmo comboio. Mas, em lugar de assumir a tragédia, Guido transforma-a aos olhos do filho num enorme jogo. Afinal, tudo aquilo não passa de uma encenação montada pelos alemães para saber quem consegue atingir os mil pontos. Não comer, dá 60 pontos, esconder-se dos guardas e nunca ser apanhado para ser enviado para os fornos crematórios, dá mais 60 pontos. E mesmo as instruções berradas pelos guardas se transformam numa patética tradução de “regras de jogo”: “Não se pode pedir comida, não se pode chorar pela mãe, e quem se portar mal leva um letreiro de idiota nas costas!”.


A reconstituição do universo concentracionário é invulgarmente bem conseguida, num espaço relativamente restrito. A entrada do comboio com os judeus é fabulosamente enquadrada de frente, seguindo-se um travelling para a esquerda que descobre a saída dos prisioneiros. Mais adiante, a camarata onde se amontoam os judeus é angustiante, relembrando planos de “A Passageira”, de Munk. Guido conta depois ao filho como os concorrentes ao jogo são numerados na roupa e na carne do braço (“para não se esquecerem”) – aqui Begnini diz-nos que o número escolhido foi o mesmo que levava Chaplin, em homenagem a “O Grande Ditador”. E os trabalhos e os dias passam, até às descobertas do horror – um espantoso plano em tons de cinza com uma montanha de cadáveres, algo que se aproxima de Brueguel ou Bosh, a que tivesse faltado a cor. Um dia a guerra acaba... e surge a razão de ser desse título premonitório: a vida, apesar de tudo, é bela.
De resto, o filme tem uma notável direcção artística, com cenários magníficos e muito bem aproveitados, desde o restaurante do tio, à casa de Guido e Dora, até todas as sequências passadas no campo de concentração. Excelente é ainda a partitura musical, com a assinatura de Nicola Piovani, que restitui um pouco do ambiente felliniano tão caro a Roberto Begnini.
Consagração de uma personalidade ímpar, “La Vita é Bella” impôs internacionalmente o nome de Robertoo Begnini. Grande Prémio do Júri, em Cannes, oito David di Donatello (os oscars italianos), entre os quais melhor filme italiano, melhor realização, melhor argumento e melhor actor do ano, e ainda sete nomeações para os Oscars, um record nunca antes atingido por um filme de língua estrangeira. Com a curiosidade de disputar o Oscar de melhor filme do ano e melhor filme estrangeiro em simultâneo, o que não acontecia desde 1969, com “Z”, de Costa Gravas. Ganhou três Oscars: Melhor Filme em Língua Não Inglesa, Melhor Actor e Melhor Música Original. Um triunfo para Robertoo Begnini e um êxito para o cinema italiano. Nos EUA, o filme bateu o record de “O Carteiro de Pablo Neruda”, atingindo um número de espectadores nunca anteriormente alcançado por um filme em língua não inglesa (quase 22 milhões de dólares de receita).


A VIDA É BELA
Título original: La vita è bella
Realização: Robertoo Benigni (Itália, 1997);
Argumento: Vincenzo Cerami, Robertoo Benigni; Produção: Gianluigi Braschi, Mario Cotone, John M. Davis, Elda Ferri, Agnès Mentre, John Rogers; Música: Nicola Piovani; Fotografia (cor): Tonino Delli Colli; Montagem: Simona Paggi; Casting: Shaila Rubin; Design de produção: Danilo Donati; Direcção artística: Danilo Donati; Decoração: Luigi Urbani; Guarda-roupa: Danilo Donati; Maquilhagem: Giusy Bovino, Martina Cossu, Walter Cossu, Maria Pia Crapanzano, Enrico Iacoponi, Federico Laurenti, Fabio Lucchetti; Direcção de Produção: Tullio Lullo, John Rogers, Pietro Sassaroli, Attilio Viti; Assistentes de realização: Gianni Arduini, Daniele Cama, Dan Edelstein, Giovanni Marino, Luigi Spoletini; Departamento de arte: Emanuela Alteri, Rosario Calascibetta, Paolo Cameli, Alberto Ciolfi, Vito Consoli, Maurizio di Clemente, Ivano Gatti, Robertoo Magagnini, Romolo Severi, Fernando Valento; Som: Benni Atria, Claudio Chiossi, Alberto Doni, Dan Edelstein, Ettore Mancini, Silvia Moraes, Tullio Morganti; Efeitos especiais: Kenneth Cassar, Giovanni Corridori; Companhias de produção: Melampo Cinematografica, Cecchi Gori Group Tiger Cinematografica; Intérpretes: Robertoo Benigni (Guido), Nicoletta Braschi (Dora), Giorgio Cantarini (Joshua), Giustino Durano (Tio Eliseo), Sergio Bini Bustric (Ferruccio), Marisa Paredes (Mãe de Dora), Horst Buchholz (Dr. Lessing), Giuliana Lojodice, Amerigo Fontani, Pietro De Silva, Francesco Guzzo, Raffaella Lebboroni, Claudio Alfonsi, Gil Baroni, Massimo Bianchi, Jürgen Bohn, Verena Buratti, Roberto Camero, Ennio Consalvi, Giancarlo Cosentino, Alfiero Falomi, Antonio Fommei, Stefano Frangipani, Ernst Frowein Holger, Alessandra Grassi, Hannes Hellmann, Wolfgang Hillinger, Patrizia Lazzarini, Concetta Lombardo, Maria Rita Macellari, Carlotta Mangione, Franco Mescolini, Andrea Nardi, Cristiana Porchiella, Antonio Prester, Gina Rovere, Richard Sammel, James Schindler, Andrea Tidona, Dirk K. van den Berg, Giovanna Villa, etc. Duração: 116 minutos; Distribuição em Portugal: LNK; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Janeiro de 1999.


ROBERTOO BENIGNI (1952 - )
Robertoo Remigio Benigni nasceu a 27 de Outubro de 1952, em Castiglion Fiorentino, Toscana, Itália. Como actor, tornou-se muito popular em Itália, na década de 1970, ao surgir numa série de TV, Televacca, que causou certo escândalo nesse tempo, e foi suspensa pela censura. Simpatizante do Partido Comunista Italiano, brinca com Enrico Berlinguer, uma figura séria da política italiana e do Partido, o que de alguma forma cria uma ruptura na maneira como os políticos italianos eram vistos e se davam a ver. Irreverente e espalhafatoso, na década de 1980 insulta o papa João Paulo II durante um importante show de TV ao vivo, sendo censurado novamente. Casado com a actriz Nicoletta Braschi (desde 1991 até ao presente), Benigni torna-se mundialmente famoso com “A Vida é Bela”, que lhe rende um enorme sucesso público e um muito apreciável conjunto de prémios e homenagens. Nos Oscares de 1999, ganha o de Melhor Actor, de Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Música. Mas arrecada ainda o Prémio Screen Actors Guild, o César para Melhor Filme Estrangeiro, o BAFTA para Melhor Actor, o Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes. Posteriormente a sua carreira perdeu algum fulgor. Mas continua igualmente a trabalhar como actor para outros realizadores, como Fellini ou Jim Jarmusch.

Filmografia
Como actor: 1972: Sorelle Materassi (TV); 1976: Onda libera (TV); 1977: Berlinguer ti voglio bene, de Giuseppe Bertolucci; 1978: Letti selvaggi (Com Elas Todo o Cuidado É Pouco) de Luigi Zampa; 1979: La Luna (A Lua), de Bernardo Bertolucci; I giorni cantata, de Paolo Pietrangeli; 1979: Clair de femme (A Luz da Paixão), de Costa-Gavras; Chiedo asilo (O Amigo das Crianças), de Marco Ferreri; Ma che cos'è questo amore (TV); 1980: Pipicacadodo, de Marco Ferreri; 1981: Il minestrone, de Sergio Citti; 1982: Morto Troisi, viva Troisi! (TV); 1983: Tu mi turbi: Benigno (episódios "Durante Cristo", "In banca","Angelo", "I due milliti"); 1985: Non ci resta che piangere, de Roberto Benigni, Massimo Troisi;  986: Coffee and Cigarettes, de Jim Jarmusch (curta-metragem); 1986: Cinématon n°801, de Gérard Courant; 1986: Down by Law (Vencidos pela Lei), de Jim Jarmusch; 1988: Il Piccolo Diavolo (O Pequeno Diabo), de Roberto Benigni; 1990: La Voce della luna (A Voz da Lua), de Federico Fellini; 1991: Johnny Stecchino (Johnny Palito), de Roberto Benigni; 1991: Night on Earth (Noite na Terra), de Jim Jarmusch; 1993: Son of the Pink Panther (O Filho da Pantera Cor de Rosa) de Blake Edwards; 1994: Il Mostro (O Monstro), de Roberto Benigni; 1997: La vita è bella (A Vida é Bela), de Roberto Benigni; 1998: Astérix et Obélix contre César (Astérix & Obélix Contra César), de Claude Zidi; 2002: Pinocchio (Pinóquio), de Roberto Benigni; 2003: Coffee and Cigarettes (Café e Cigarros), de Jim Jarmusch (episódio "Strange to Meet You"); 2005: La Tigre e la neve (O Tigre e a Neve), de Roberto Benigni; 2010: La commedia di Amos Poe (voz); 2012: To Rome With Love (Para Roma com Amor), de Woody Allen.

Como realizador: 1983: Tu mi turbi; 1984: L'addio a Enrico Berlinguer (Documentário); 1985: Non ci resta che piangere; 1988: O Pequeno Diabo; 1991: Johnny Palito; 1994: O Monstro; 1997: A Vida é Bela; 2002: Pinóquio; 2005: O Tigre e a Neve.